Ela acordava cedinho todos os dias, num horário em que se não houvesse relógio, não daria para saber se era dia ou noite apenas por olhar o céu. Pulava da cama meio que a contragosto, fazia um café bem forte, cortava um pedaço de pão, untava com margarina e comia ali mesmo, de pé, encostada na pia da cozinha.
Trocava de roupas rapidamente, escovava os dentes, passava um pente pelos cabelos negros e encaracolados, pendurava a bolsa no ombro esquerdo, acendia o primeiro cigarro do dia e descia as escadas ainda sobre a luz dos postes de iluminação pública. No ponto de ônibus, esperava uma boa alma que lhe desse uma carona para que pudesse chegar ao seu destino.
Já em seu ambiente de trabalho, o sol teimava em ainda não dar o “ar da sua graça”, dirigia-se então à parte de trás do prédio e avaliava se a lenha para o fogão estava muito úmida do sereno da noite, ou se seria possível acender o fogo com aquelas mesmas. Escolhia algumas e se dirigia à cozinha. Ajeitava-as delicadamente na “boca” do velho fogão a lenha, juntava algumas sacolas plásticas e riscava o fósforo, aproveitando para acender o terceiro ou quarto cigarro do dia.
Sobre a 'trempe' do fogão colocava o pesado tacho cheio de água para ferver, em outro buraco, mais atrás, uma velha chaleira para fazer outra garrafa de café. Enquanto a lenha e a água aqueciam, as crianças começavam a chegar. Não havia rituais de entrada, elas chegavam com seus caderninhos dentro das sacolas de açúcar, encontravam seus lugares e iam sentando, sem cerimônia, e abrindo as atividades de casa, passadas para eles no dia anterior.
A essa altura do dia, o quadro de giz já estava cheio de atividades para as quatro séries que estudavam naquela pequena sala de aula sem energia elétrica. No canto esquerdo de quem entrava na sala de aula, podíamos ver no quadro de giz as atividades para a primeira série, aí seguiam-se as atividades da segunda, terceira e quarta.
A disposição das carteiras na sala de aula também eram mais ou menos assim, com exceção da segunda série que sentava-se em bloco no meio da sala e da quarta que sentava em sequência na parede perto da porta. Em todas as paredes podíamos ver cartazes dos mais diversos temas, além de um grande plástico transparente com bolsas para livros de literatura. Em cima do quadro os cartizinhos do método Dom Bosco com o ta-te-ti-to-tu e os demais pedacinhos e suas famílias, além dos numerais ordinais, cardinais e romanos. O cartaz com a tabuada de multiplicar estava estendido com letras e números bem grandes numa das laterais da sala para que todos os alunos pudessem vê-la e não errar nas operações.
De volta à cozinha despejava na água fervente do tacho uma sopa pré-pronta, temperada e com carne de soja. A sopa tinha um aspecto azulado, meio estranho, cheiro forte, mas para a maioria daquelas crianças seria a primeira (e talvez a melhor) refeição do dia.
Um a um os alunos iam chegando e entrando. As vozes dos mais animados se faziam ouvir pela pequena escola, que se consistia de uma sala de aula, uma minúscula cozinha, dois banheiros ainda menores, uma pequena área com um lavatório e um quintal.
O quintal era um detalhe à parte. Mesmo sendo a única adulta naquela escola, responsável por ensinar os pequenos a ler, escrever e contar, fazedora de sopas de aspectos estranhos e faxineira de plantão, ela transformou aquele pequeno pedaço de chão em um pátio limpinho, um jardim com flores e um pinheiro para enfeitar no natal e uma belíssima horta com legumes e verduras de todas as espécies que serviam, também, para melhorar o aspecto das sopas pré-prontas.
Depois que servia a merenda aos alunos no recreio, cada qual lavava seu próprio prato e ela lavava apenas o grande tacho de sopa. Enquanto os alunos brincavam um pouco e faziam a digestão, ela terminava de arrumar a cozinha, certificava-se de que o fogo do fogão havia apagado e acendia mais um cigarro com a brasa da lenha que ainda restava.
No final da manhã, quando os alunos já haviam realizado todas as atividades previstas em seu plano de aula e já haviam ido para suas casas, ela recolhia os livros que eles haviam deixado nas carteiras, passava uma vassoura no chão de tacos de madeira, recolhia o lixo e jogava no fogão para ser queimado no dia anterior, molhavas as flores do jardim e as plantas da horta, fechava as janelas da sala, passava a tranca nas portas, pendurava a pesada bolsa no ombro esquerdo e seguia para a estrada, acendendo mais um cigarro, na esperança de outra boa alma lhe dar uma carona de volta para casa.
Não sei como dava conta de tudo aquilo, mas era fantástico ver as crianças todas lendo, escrevendo e realizando as quatro operações com destreza, além, é claro, dos conteúdos de ciências, geografia, história e civismo, porque ela achava importante comemorar as datas cívicas, mesmo lá no meio do mato onde ficava localizada a sua escolinha.
E assim foi durante vinte e dois anos, até que, por uma aposentadoria antecipada ela abandonou as caronas na madrugada, as lenhas molhadas, os tachos de sopa, o método Dom Bosco, os meninos das mais variadas formas que a chamavam de tia e o prazer de ensinar simplesmente para ver aprender.
Feliz Dia dos Professores àqueles que o são por amor à profissão.
Lindo, Patrícia...
ResponderExcluirSimples e tocante, fiquei sem palavras.
Realmente, só merece um Feliz Dia, aqueles que são professores por amor. Na verdade, aqueles que não o fazem assim, são mais frustrados que felizes, né?
Bj pra vc e meu carinho
Como já disse, me vi no seu texto. Recordei os meus tempos de infância na escolinha da roça. Da professora, com as quatro turmas, da merenda que ela mesma fazia, ora a gente ajudava, das vasilhas lavadas no rio... Eta tempo bom!
ResponderExcluirLembrei-me também do meu tempo de "professorinha" no interior, das crianças, doces crianças, do carinho, dos caminhos, das aventuras... Que delícia de profissão!
Obrigada por me fazer recordar esses belos momentos através do seu lindo e poético texto!
Bjs