sábado, 30 de julho de 2011

O CASO DO URUBU

Não passava de um menino franzino e de pernas tortas. Vestia calças curtas, amarradas com um pedaço qualquer de corda encontrado no chão escuro da tuia. A camisinha de algodão cru que cobria seu peito ossudo já não coçava mais, também não tinha tantos botões como a mãe havia feito, tempos atrás, com tanto carinho.

Naquela tarde, enquanto atravessava o terreiro em direção ao pomar, trazia no embornal um naco de carne roubado da lata na dispensa e um pedaço, bem comprido de barbante que, por pura sorte achara quando vinha embora da escola, jogado no chão em frente à venda. Tinha também uma folha arrancada do caderno, já escrita, lá no início do ano, porque se fosse uma escrita recente, ou uma das limpinhas, branquinhas, esperando o mata-borrão e a professora descobrisse, seria mais um motivo de sova.

Quando viu aquele cordão perdido na beira da rua a idéia nascera. Não falara nada a ninguém, a marotice estava bem arquitetada na sua cabecinha loira. Não precisaria de quem quer que fosse para ajudar a dar conta de sua obra. Mas de que adianta aprontar se não tem com quem dividir os louros do aprontamento? Foi então buscar o irmão, companheiro de todas as horas desde o momento em que havia nascido, um exatamente depois do outro.

De pronto, ele assentiu na travessura, esfregaram as mãos e serraram os olhos azuis da cor do céu num sorriso matreiro de certeza de que nada daria errado. Seguiram um atrás do outro roça acima, cruzaram o cafezal, pularam a cerca de arame farpado, atravessaram uma parte da mata e chegaram na pequena clareira no alto do morro.

No centro da clareira colocaram a armadilha: um pedaço de carne amarrado a um longo barbante que foi minuciosamente esticado ao chão e na outra ponta a folha de caderno escrita estendida brilhando sob sol.

Os ”filipes” procuraram uma árvore de onde pudessem observar o feito e suas conseqüências. Pousaram num galho e pouco esperaram até que a vítima aparecesse, uma grande ave cor de ébano que pousou na clareira e em pequenos saltos chegou-se ao pedaço de carne, abocanhando-o de uma só vez. O barbante, como esperado pelos meninos, ficou pendurado no canto do bico da ave e a folha de caderno escrita na sua ponta.

Rapidamente os moleques desceram da árvore em estardalhaço. A ave assustou-se e levantou vôo. O barbante pendurado voou junto fazendo a folha de caderno escrita rodopiar no céu, num espetáculo ímpar para aqueles meninos. Os garotos, eufóricos corriam, gritavam e gesticulavam feito loucos atrás da ave.

Talvez pelo incômodo do barbante agarrado na goela, a ave não voava alto e ficava dando uns soluços no ar. Nesses momentos específicos os meninos gritavam uníssonos. Mais alguns minutos de perseguição e a ave regurgitou o pedaço de carne amarrado ao barbante. A folha de caderno escrita foi caindo ziguezagueando até chegar ao chão.

A felicidade dos meninos veio ao ápice. Correram para ver os restos disformes de carne vomitado pela ave. Gritos, risos, comentários inexpressíveis, tapinhas nas costas de felicitações. O plano havia dado certo.

Satisfeitos refizeram o caminho de volta para casa com o embornal vazio pendurado ao lado do corpo e a cabecinha ainda saltitando com a última travessura.

Que coisa, não? Como poderia ter tido uma idéia tão fantástica: amarrar um pedaço de carne a um barbante segurando uma folha de caderno escrita só para vê-la voando pelo céu da cor de seus olhos.

terça-feira, 5 de julho de 2011

CHINESINHO DO SONO

Cheguei em casa aquela noite disposta a descansar. Após vários dias correndo de um lado para outro com noites de menos de 5h de duração no meio, era justo que a cama fosse meu local mais desejado naquele momento.

Um banho morno ajudou-me a relaxar. Colchão macio, cobertor felpudo, penumbra e o maravilhoso som da noite.

Mansamente meus olhos foram fechando-se, era como se o chinesinho do sono viesse jogar areia neles, igualzinho ao desenho animado do Pluto. Pouco a pouco o inconsciente foi tomando conta de mim; por alguns instantes distanciei-me do mudo num sono calmo e tranqüilo.

Um ruído cortou o silêncio da noite. Susto. De súbito meus olhos abriram-se. Olhei o negrume da noite e nada pude ver. Agucei os ouvidos, mas, como anteriormente, só podia ouvir o som da noite. Aos poucos fui relaxando e entregando-me ao sono, distanciando-me do mundo, desligando-me.

Novamente de súbito, o mesmo ruído anterior acordou-me assustadamente. Desta vez os olhos cheios da areia do chinesinho forçaram-se na direção do ruído, mas nenhum movimento, nada parecia residir ali naquele quarto além de mim e do chinesinho arrastando seu saco de areia do sono.

Minha mente, meio confusa de sono tentava reproduzir o ruído já ouvido por duas vezes na expectativa de conseguir entender o que estava sucedendo, mas nada, às portas do mundo dos sonhos os sons eram diferentes, sem explicação e possibilidade de reportar.

Pela terceira vez meus olhos voltaram a fechar-se e o chinesinho do sono novamente chegou bem pertinho de mim arrastando seu saquinho de areia e jogou outro punhado em meus olhos, o sono veio abancando-se, fui desligando-me, entretanto os ouvidos avisaram-me de outro ruído, o coração disparou dentro do peito os olhos abriram de todo. Agora sim pude distinguir a real direção do ruído. De um salto pus-me de pé, apertei o interruptor e fez-se luz. Num gesto rápido abri a porta do armário e mais rápido ainda saiu de lá um gato. Esbaforido, o bichano saiu quarto a fora louco e ao mesmo tempo feliz com a liberdade que já julgava perdida.

Agora sim poderia entregar-me a meu mais que desejado sono. Mansamente meus olhos foram fechando-se, a mente desligando-se. Fui distanciando-me do mundo, finalmente adormecendo.

Desta vez, sem que os ouvidos avisassem o coração disparou, os olhos se abriram espalhando areia do sono para todos os lados, era a mente que queria saber: como aquele bendito gato foi parar justo dentro do meu armário?

(Auditório do I Encontro Estadual de Educação à Distância, enquanto esperava o início)