domingo, 7 de março de 2010

QUANDO TUDO ERA MAIS FÁCIL


Suavemente o sol entrava pelas frestas da janela amarela com a veneziana ainda entreaberta. Com os olhos embaçados pelo sono olhei em volta e percebi meu quarto: brinquedos espalhados pelo chão, a casinha de bonecas montada ao pé da minha cama, uma revista em quadrinhos jogada ao meu lado e, embaixo da cama uma almofada vazia.
Um som de rádio que vinha da cozinha me ajudou a terminar de despertar. Num ressalto joguei de lado as cobertas e pulei no chão. Passei a mão pelos cabelos, esfreguei os olhos e fui conferir se o café estava pronto, se havia pão na mesa ou se eu seria a responsável por buscá-lo no bar da esquina.

Um café corrido, um chinelo no pé (que provavelmente seria esquecido em algum lugar), um afago na minha cachorrinha e a primeira fugida sorrateira do dia para a rua.

Era domingo, e como todos os domingos o número de meninos na rua aumentava, triplicava talvez e isso era maravilhoso, pois significava que as brincadeiras seriam mais divertidas, mais entusiasmadas, mais esfuziantes.

Pela manhã nos concentramos na rua de cima, o sol ainda não havia chegado lá e, além do mais, quase não passavam carros. Pouco a pouco todos fomos chegando e os que se atrasaram foram convocados em suas próprias casas, aos gritos.

A rua virou um verdadeiro parque de diversões. Criamos campos de queimadas, bandeirinha e até de futebol. Como sou uma das mais encrenqueiras, precisei sair do jogo emburrada em alguns momentos ou expulsa em outros. Mas algum dia serei a dona da bola, ou de algum instrumento principal do brinquedo, e aí não, aí eu poderei encrencar com quem quiser, pois eu serei a rainha da rua naquele dia.

Quando enjoamos das corridas, partimos para o pique-esconde e, depois, chicotinho-queimado. Os caminhões do Seu João “Seis de Pano” (estranhíssimo esse nome de gente) foi nosso esconderijo predileto naquele dia, até que eu caí da caçamba de bunda no meio fio e prometi nunca mais me meter a besta de subir lá.

(Mais tarde, bem mais tarde, descobri que o nome do Senhor era João Sergipano, o que prova minha mente imaginativa desde Cedo.)

Quando nossos estômagos avisaram que a hora do almoço se aproximava, ouvimos, quase que ao mesmo tempo, de cada canto da rua, vozes de mães nas janelas das casas nos chamando para a refeição. Corremos em disparada em direção aquelas vozes sem ao menos dizermos tchau. Não só a fome nos direcionava e fazia correr, mas, principalmente o medo de não cumprirmos a ordem e sermos castigados e privados da próxima etapa de atividades domingueiras.

À tarde nossas brincadeiras foram direcionadas para a rua de baixo. Mas do outro quarteirão, depois da avenida, atrás da prefeitura. Parecia que lá tinha ainda mais meninos, de onde surgiam tantos? Não sei (e acho que nunca saberei).

As brincadeiras por lá se repetiram, se revezaram, mas tinha o diferencial da prefeitura. Diziam que, dentro do prédio da prefeitura tinha um fantasma de um juiz que foi morto lá dentro quando funcionava ali o fórum, há muitos anos.

(Mais tarde fiquei sabendo que não foi só um juiz que morreu naquele prédio, mas outras três pessoas também, inclusive o autor dos disparos contra o juiz, o promotor e um escrivão, um bandido que não aceitava estar preso e possivelmente ser condenado por seus crimes e preferiu assassinar seus algozes e ser morto há terminar seus dias na cadeia.)

No final da tarde, quando o sol já ia se retirando para seu merecido descanso, nós nos sentamos no murinho do entorno do prédio e ficamos nos desafiando para ver quem teria coragem de passar por uma das grades serradas e entrar no pátio só para ver se o fantasma aparecia. Ninguém se aventurou aquele dia, quem sabe no próximo domingo.

O sol terminou seu turno e junto ao crepúsculo novas e repetidas vozes chamaram das janelas e lá vou eu em busca dos meus chinelos (torcendo por encontrá-los, ou de certo levarei uma sova). Graças a Deus os encontrei jogados perto do poste, em frente à casa da Flávia (ufa!).

Fui subindo as escadas sem muitas forças, Lessie me espera na porta abanando o rabo, faço novo carinho em sua cabeça e me jogo no sofá,exausta. Ao olhar para cima deparo-me com minha mãe com uma toalha na mão. Ela não precisa dizer nada, eu é que respondo: “Já estou indo tomar banho, mamãe. Eu sei que o domingo acabou e já vai começar ‘Os Trapalhões’”.

3 comentários:

  1. É... parece que quando éramos crianças os dias, espcialmente os domingos, tinham outro sabor: festa, firula, fantasia, dia de 'ver Deus'...

    Ai,ai... inevitável não dizer: "ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS!!!"

    Belo texto, meu anjo, me fez por alguns instantes reviver momentos inesquecíveis de minha infância...

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  2. Que alegria em poder ler detalhes de sua infância, Patricia!
    Nossa imaginação realmente sempre foi mágica, e histórias de fantasmas nunca faltaram, rs...
    Adorei esse seu texto, escrito claramente com o seu coração de menina =D

    Fiquei lisonjeado por suas palavras lá no blog! É uma honra saber que de certa forma servi como inspiração para esse maravilhoso relato! Você é um doce :-)
    Bjs, Robson.

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  3. Patrícia,
    Sabe o que é melhor de ser criança? A capacidade de relevar que elas teem...Brigam, emburram, ficam de mal, fazem o temido "belém-belém"; mas se veem que a brincadeira está mesmo boa, esquecem tudo isso pelo prazer de ser feliz...

    Delicioso texto, que lindas lembranças me trouxe à memória... Obrigada!

    Bj, abraço e meu carinho de sempre

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